O Conto da Aia

Com lugar certo entre as grandes distopias, O Conto da Aia, de Margareth Atwood, revela-se uma experiência de leitura bastante diferente. Ele é o primeiro título de 2021 do Distopília (clube de leitura).

O livro converge com seus ancestrais em muitos sentidos do gênero, mas se permite diferenciar pela exploração magistral da primeira pessoa.

Só ao lê-lo me dei conta de que 1984, Admirável Mundo Novo, Fahrenheit 451 e mesmo o mais desconhecido dessa série, Um Cântico para Leibowitz, foram todos escritos em terceira pessoa. Pode-se explicar a opção de maneira bastante óbvia. As distopias devem muito ao gênero de Fantasia, onde a descrição, por assim dizer, panorâmica, é crucial para o estabelecimento mimético do “novo mundo” que se pretende instituir.

Ao se distanciar de nossa realidade imediata (mesmo que para servir de metáfora a ela), a distopia pode soar inconsistente. Para se impôr como realidade verossímil ela precisa ser abordada da maneira mais direta possível. Só assim o hipotético sistema de governo, o arranjo social e tudo o mais pode conquistar a carnalidade necessária, o que se alcança graças, entre outros artifícios, à perspectiva em terceira pessoa.

No Conto da Aia essa perspectiva se altera com sucesso, mas talvez deva essa vitória à consolidação realizada pelos clássicos já citados. “Sobre os ombros de gigantes” Atwood consegue inovar e escavar ainda mais fundo a paisagem sombria dos males que acometem a sociedade. É possível nesse livro a retomada da trilha iniciada por Nós, de Zamiátin, que, escrito em primeira pessoa, antecede 1984 e Admirável Mundo Novo.

De toda forma, o relato de Offred, a protagonista, com suas nuances ora de memória, ora de fantasia, atinge o leitor de forma impactante, e mostra a internalização de um mundo doentio.

Em uma passagem engenhosa, ficamos abalados pela notícia de que sua filha está viva, e não morta como a personagem havia sugerido anteriormente, num eco de seu processo de condicionamento cerebral. Arrancada da mãe a menina passou a ser propriedade do Estado.

Esses triunfos emocionais da narrativa retratam a alma macerada por uma sociedade totalitária. Somam-se a eles o êxito das passagens digressivas. Elas aludem centrifugamente à tradição literária, mas centripetamente, ao não se entregarem de maneira completa, enriquecem a obra, que assimila em si mesma a força desses sentidos apontados.

Trago como exemplo uma pérola que encontrei graças à leitura recente de Mulheres que Correm com os Lobos. Nesse livro, ao analisar a figura do sapateiro nos contos de fada, especificamente na história Os Sapatinhos Vermelhos, Estés revela que “o predador natural no interior da psique é um mutante, uma força capaz de se disfarçar”, e mais adiante que, como o soldado, o sapateiro é “uma descrição do diabo disfarçado”, “imagem usada para retratar as forças negativas”, e, em nota: “Nos tempos pós-cristãos, as antigas ferramentas do sapateiro tornaram-se sinônimos das ferramentas de tortura do diabo”.

Em uma passagem do Conto da Aia onde o antagonista lê a Bíblia:

“O comandante fica sentado, olhando para baixo. O comandante suspira, tira um par de óculos de leitura do bolso interno, com armação de ouro, e põe os óculos. Agora ele parece um sapateiro em um livro antigo de contos de fadas. Será que nunca se acabam os seus disfarces, de benevolência?”

Esse é o meu tipo preferido de alusão. A que se inscreve de maneira irrevogável no texto, mas que não se explica abertamente, deixando que o leitor ligue os pontos. O recurso exige muita habilidade, do contrário o conhecimento do que se vai aludir pode não combinar com a voz do personagem. Atwood, como Guimarães Rosa com seu Riobaldo, consegue incrustar tesouros de filosofia e literatura na joia de sua Offred, de modo que o engaste seja não só verossímil e comovente, mas também literariamente belo.