Editando Machado

A experiência de trabalhar com um dos clássicos de um dos maiores escritores da história da nossa literatura é um aprendizado valioso para qualquer editor. Mesmo que as mudanças no texto em si tenham sido mínimas, (limitadas apenas a atualização ortográfica), apresentar essa obra com uma nova cara para novos leitores, além de uma grande responsabilidade, é um prazer enorme.

Por mais que conheçamos uma obra, transportá-la para um novo livro é um processo que nos leva a aprofundar nossa intimidade com ela e a perceber nuanças e sutilezas recônditas que talvez jamais descobriríamos numa leitura desinteressada.

Logo no início do trabalho com Memórias póstumas de Brás Cubas os comentários metaeditoriais de Machado através do narrador me chamaram a atenção. O fato biográfico de o autor ter trabalhado como tipógrafo na juventude nunca me pareceu importante, até que me demorei mais do que de costume em algumas passagens do livro em que ele faz questão de utilizar os jargões da profissão.

Notei também os comentários alusivos à caligrafia dos personagens, me reportando a um tempo de cartas e de manuscritos, como um dia o foi o próprio livro de que tratamos. (Algum tempo depois desse trabalho, tive a oportunidade de ver na Academia Brasileira de Letras o manuscrito de Machado do Memorial de Aires, última obra do autor).

A partir disso, minha primeira ideia foi aproximar o livro ao máximo dessas sugestões, o que já diferenciou de cara a nossa edição, visto que este livro, uma das referências máximas da nossa história literária, é, na maioria das vezes, editado de forma sisuda, deixando escapar todo seu espírito debochado e irônico.

Assim, para as cartas e bilhetes escolhemos um tipo manuscrito, diferente para cada personagem:

Não era a letra fina e correta de Virgília, mas grossa e desigual; o V da assinatura não passava de um rabisco sem intenção alfabética; de maneira que, se a carta aparecesse, era mui difícil atribuir-lhe a autoria.

As sugestões metaeditoriais também foram, na medida do possível, cumpridas rigorosamente:

Capítulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in-fólio, mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas… principalmente vinhetas… Não, não alonguemos o capítulo.

Vai em versaletes esse nome. Oblivion!

Nessa linha, o livro “que cavou um fosso” na obra de Machado, dividindo sua escrita em duas fases, me pareceu muito mais experimental, de maneira que até mesmo a minha interpretação de alguns trechos se tornou mais rica:

“Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente num pedaço de papel, com uma ponta de lápis; traçava uma palavra, uma frase, um verso, um nariz, um triângulo, e repetia-os muitas vezes, sem ordem, ao acaso, assim:

arma virumque cano

A

Arma virumque cano

(…)

foi o virumque que me fez chegar ao nome do próprio poeta, por causa da primeira sílaba, ia a escrever virumque, – e sai-me Virgílio, então continuei:

vir

virgílio

virgílio

Aqui, esse ‘Vírgílio’ escrito a esmo no papel, me lembrou o Virgílio que acompanha a jornada de Dante ao inferno na Divina Comédia, identificando-se então com o pai de Brás Cubas, que lhe oferece neste ponto do romance “um lugar de deputado e um casamento”, demanda sob a qual o caráter do protagonista vai se arruinar de vez, sobretudo na relação adúltera com Virgília, cujo nome também evoca a mesma interpretação.

O próprio objeto livro, na obra, é muitas vezes tomado como símbolo ou metáfora da vida e da morte:

minha teoria das edições humanas… Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes… Lembra-vos ainda a minha teoria das edições humanas? Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta edição, revista e emendada, mas ainda inçada de descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava alguma compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação, que era luxuosa

senti-me transformado na Suma Teológica de São Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

Machado de Assis também usa ardilosamente um argumento editorial para justificar um artifício ficcional basilar para a leitura desse texto. Quando o narrador se recusa a explicar o “processo extraordinário” da composição das memórias póstumas no “prólogo”, ele dá um dos passos decisivos para a obra. Vejamos:

O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra.

Se a explicação dada a esse “processo extraordinário” não convecesse o leitor, o romance perderia de cara a “suspensão da descrença” e o relato de Brás Cubas não teria a mesma força. Assim, o autor adequa seu modelo (o “Diálogo dos mortos”, de Luciano) ao seu tempo, num relance.

Enquanto na obra do samosateno é preciso recorrer ao mito de Castor e Pólux (que se alternavam no mundo dos vivos a cada dia) para que Diógenes transmita do Hades um recado a Menipo, comprovando a existência e as possibilidades desse “outro mundo”, Machado evoca apenas a figura fantasmática de um editor implacável que lhe tolheu convenientemente as explicações, lançando o leitor com um só golpe no mesmo ponto de partida da obra ancestral: a fala despudorada de um morto zombando do mundo dos vivos.

Deixo para outro texto a apresentação da corrente de pensamento que não enxerga Machado de Assis como um escritor realista, a qual também orientou a minha edição do livro. Ficam aí então algumas das razões que configuraram a nossa edição de Memórias póstumas de Brás Cubas, a qual você tem acesso pelo site:

https://livraria.camara.leg.br/