Subúrbios da escrita

Machado de Assis, em um de seus artigos para periódicos, vislumbrou dois Brasis, o “Real” e o “Oficial”. Segundo o escritor, “o país real é bom e revela os melhores instintos; mas, o país oficial, é caricato e burlesco”.

Ariano Suassuna, outro grande intelectual brasileiro, assumiu essa dicotomia machadiana como base para a sua atividade literária. Tanto que, quando de sua entrada para a Academia Brasileira de Letras, suposta instituição do “Brasil Oficial”, procurou ritualmente, por meio de sua roupa e adereços que usava, carregar também a homenagem que recebeu do “Brasil Real”. Segundo ele, o Brasil Oficial é aquele que no século XVIII:

(…) se orgulhava do que tinha de português e se envergonhava do que tinha de negro e de índio. Que no século XIX, passou a se envergonhar também do que tinha de português e passou a querer ser francês.

Disse ainda o autor do Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta que, atualmente, “de maneira caricata”, esse Brasil Oficial quer ser americano.

É preciso cada vez mais destacar autores como Lima Barreto, que escreveram e que escrevem para e a partir do Brasil Real. O Brasil Real dos subúrbios, ou das periferias, tão caro ao autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma, é a base de sua literatura, de sua denúncia e de sua militância artística.

Para Agripino Grieco, Lima Barreto é o “mais brasileiro dos nossos romancistas”. Segundo Osman Lins, o autor “é ligado ao povo como talvez não tenha sido nenhum outro escritor do Brasil”. “Negro, pobre e sem título acadêmico, seu mundo é o pequeno-burguês e proletário. Trabalhadores de classe média-baixa e figuras populares são os seus melhores personagens”.

Filho de um tipógrafo e de uma professora primária, Afonso Henriques de Lima Barreto ficou órfão de mãe aos sete anos. Seu pai, ao ser demitido da Imprensa Nacional à época da proclamação da República, começa a trabalhar na Colônia de Alienados da Ilha do Governador. Lima Barreto, por influência de seu padrinho, o visconde de Ouro Preto, consegue matricular-se na Escola Politécnica, mas abandona o curso para cuidar de seu pai, que enlouquece, e dos demais membros da família.

Colaborando na imprensa e trabalhando na Secretaria de Guerra, lendo a ficção europeia do séc. XIX e os grandes romancistas russos, o escritor planeja, nesta época, quase todos os seus romances. Mas, em suas constantes crises de depressão, Lima Barreto recorre, lamentavelmente, cada vez mais, ao alcoolismo, chegando a ser internado por duas vezes no Hospício Nacional de Alienados.

Em 1918, impressionado pela Revolução de Outubro, passou a militar na imprensa socialista. Pouco tempo depois Lima Barreto morreu de colapso cardíaco, aos quarenta e um anos de idade, em 1922.

Capa de Triste Fim de Policarpo Quaresma, editado por mim para a Edições Câmara, e a de Lima Barreto: triste visionário, a mais recente biografia do autor.

Boa parte dos críticos interpretam a literatura de Lima Barreto como decorrência e confissão de sua atribulada biografia. Essa foi a razão para o escritor ser rejeitado em seu tempo, e é a mesma razão para o seu resgate na atualidade. Podemos entender o autor através da clave social e militante esboçada pelo seu próprio testemunho acerca da literatura.

Numa Conferência publicada na Revista Sousa Cruz em novembro de 1921, o escritor defende o “poder de contágio” dessa atividade. Para ele, a beleza da arte reside nas ideias que anuncia. Essas ideias, transformadas em sentimento pela técnica literária, são assimiladas à memória e então, incorporadas pelo leitor. Segundo o autor:

A arte literária se apresenta com um verdadeiro poder de contágio que a faz facilmente passar de simples capricho individual, em traço de união, em força de ligação entre os homens, sendo capaz, portanto, de concorrer para o estabelecimento de uma harmonia entre eles, orientada para um ideal imenso em que se soldem as almas aparentemente mais diferentes, reveladas, porém, como semelhantes no sofrimento da imensa dor de serem humanos… Ela sempre fez baixar das altas regiões, das abstrações da Filosofia e das inacessíveis revelações da Fé, para torná-las sensíveis a todos as verdades que interessam à perfeição da nossa sociedade. Ela explica a dor dos humildes aos poderosos e as angustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender, umas às outras, as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais diversas épocas… A literatura reforça o nosso natural sentimento de solidariedade com os nossos semelhantes, explicando-lhes os defeitos, realçando-lhes as qualidades e zombando dos fúteis motivos que nos separam uns dos outros. Ela tende a obrigar a todos nós a nos tolerarmos e a nos compreendermos.

Com estas convicções acerca da literatura, Lima Barreto praticou-a não apenas para lamentar seus infortúnios e mazelas, mas para comunicar a dor de uma classe sujeita ao controle e a opressão do “Brasil Real”. O autor fez a crônica do viver dos “desimportantes”; por isso a sua linguagem simples, desbastada dos ornamentos e piruetas tão em voga em sua época, dos malabarismos dos notáveis doutores superados pela Semana de Arte Moderna de 1922, ignorados e relegados ao esquecimento em nossos dias.

De acordo com Osman Lins, em Lima Barreto e o espaço romanesco:

A literatura para Lima Barreto não é apenas expressão, mas sobretudo comunicação, e comunicação militante, em que o escritor se engaja, tão ostensivamente quanto possível, com suas palavras e o que elas transportam. A escrita é para ele, antes de tudo, um instrumento. Tem, portanto, uma função mais utilitária do que lúdica. Em Lima Barreto não há alusões veladas e sutis, o alvo é sempre claro e o tiro forte.

Consequentemente, essa é a razão, segundo o mesmo autor, de sua linguagem simples, que tanto escandalizou seus contemporâneos. Nela, a ausência de requinte é proposital e deliberada. Uma proposta de estilo que só seria compreendida após os avanços promovidos a partir da semana de 22.

Por essas e outras o interesse pela obra de Lima Barreto vem crescendo, tendo sido o autor, no ano de 2017, o grande homenageado da Feira Literária Internacional de Parati – a FLIP, um dos nossos maiores eventos culturais.

Todas as suas obras podem ser analisadas a partir de seu drama social biográfico, conscientemente associado à condição dos suburbanos do “Brasil Real” de sua época parnasiana, “bovarista” e “nefelibata”.