Machado de Assis: um escritor sem escola

A obra de Machado de Assis é geralmente dividida em duas fases: a romântica e a realista. Como Bosi e Cândido, prefiro denominá-las de fase “convencional” e de fase “madura”, o que parece uma sutileza, mas evidencia melhor a complexidade da questão.

É preciso lembrar que o romantismo não foi mais uma das escolas literárias que influenciaram o romance, mas sim a escola do período que o definiu a ponto de lhe emprestar o nome. Durante o romantismo, houve a popularização mercadológica desse produto literário que associou a conquista de Gutenberg (a impressão) a um novo e grande público leitor (a burguesia). A literatura estava na moda e sua forma de consumo popular era o folhetim (uma capitalização tardia da invenção de Sheherazade).

Sendo assim, escrever da maneira romântica não era uma escolha, e sim uma tendência, uma condição da época. Machado de Assis, autodidata, formado na escola do romance urbano de Alencar, abandona essa disposição em sua fase de maturidade. Nisso todos concordam. O que muitos não percebem é que, ao rejeitar o romantismo, Machado rejeita também a escola que despontava como nova moda: o realismo. Como diz Maria Luísa Nunes em Machado de Assis’ Theory of the Novel:

Com a publicação das Memórias póstumas de Brás Cubas… Machado de Assis se libertou não só do Romantismo, mas também de todas as outras escolas

Nessa clave, passo a ler de maneira diferente o trecho das memórias que me era citado no ensino médio como prova da associação de Machado à escola realista:

“… era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros… Gastei trinta dias para ir do Rossio Grande ao coração de Marcela, não já cavalgando o corcel do cego desejo, mas o asno da paciência, a um tempo manhoso e teimoso”

Aqui, podemos ler nas entrelinhas, o realismo é igualado ao romantismo como mero modismo, e o autor, farto desses corcéis, põe em evidência o asno típico das narrativas sério-cômicas da sátira menipeia. Cito ainda trecho do discurso inaugural de Machado para a ABL, em que ele diz:

A academia francesa, pela qual esta se modelou, sobrevive aos acontecimentos de toda casta, às escolas literárias e às transformações civis. A vossa há de querer ter as mesmas feições de estabilidade e progresso

Machado de Assis passou a enxergar as escolas literárias como convenções que lhe limitavam o estilo. Ao ser lançado O primo Basílio, de Eça de Queiroz, Machado publicou no jornal O Cruzeiro uma crítica ao livro e à escola a que se filiava. Dela cito os excertos:

“O Crime do Padre Amaro revelou desde logo as tendências literárias do Sr. Eça de Queirós e a escola a que abertamente se filiava. O Sr. Eça de Queirós é um fiel e aspérrimo discípulo do realismo propagado pelo autor do Assommoir… Ora bem, compreende-se a ruidosa aceitação d’ O Crime do Padre Amaro. Era realismo implacável, conseqüente, lógico, levado à puerilidade e à obscuridade. Víamos aparecer na nossa língua um realista sem rebuço, sem atenuações, sem melindres, resoluto a vibrar o camartelo no mármore da outra escola, que aos olhos do Sr. Eça de Queirós parecia uma simples ruína, uma tradição acabada. Não se conhecia no nosso idioma aquela reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis. Pela primeira vez, aparecia um livro em que o escuso e o — digamos o próprio termo, pois tratamos de repelir a doutrina, não o talento, e menos o homem, — em que o escuso e o torpe eram tratados com um carinho minucioso e relacionados com uma exação de inventário. A gente de gosto leu com prazer alguns quadros, excelentemente acabados, em que o Sr. Eça de Queirós esquecia por minutos as preocupações da escola; e, ainda nos quadros que lhe destoavam, achou mais de um rasgo feliz, mais de uma expressão verdadeira; a maioria, porém, atirou-se ao inventário. Pois que havia de fazer a maioria, senão admirar a fidelidade de um autor, que não esquece nada, e não oculta nada? Porque a nova poética é isto, e só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha.”

Esse artigo data de 1878 e deixa claro a aversão de Machado ao realismo levado às últimas consequências. Por que, três anos depois, como muitos acreditam, Memórias póstumas de Brás Cubas seria o livro inaugurador dessa doutrina no Brasil?

Após um período de convalescência, e de leituras fora de moda, em que certamente pensou muito na morte e em seu legado como escritor, Machado de Assis surgiu com um novo livro experimental, totalmente diferente de tudo que escrevera até então. Nas Memórias Póstumas de Brás Cubas o autor atinge, finalmente, sua expressão própria, seu estilo, sua voz.

Nesse livro, Machado, ao invés de seguir a tendência ditada por Flaubert e Eça, deixa transbordar outras leituras que mais lhe apeteciam, sobretudo a dos ingleses da tradição luciânica. Rotulado por muitos como um “romance realista”, o livro de 1881 é narrado em primeira pessoa por um defunto, sendo escrito do além…

Nessa premissa já é possível desconsiderar a filiação realista e enxergar a influência do Diálogo dos Mortos, de Luciano de Samósata, autor do período helênico que constava da biblioteca de Machado de Assis. Luciano é citado nominalmente no conto Teoria do Medalhão, de Machado:

“… não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados.”

A influência de Luciano e de outros autores filiados à sátira menipeia em Machado está maravilhosamente relatada no livro de Enylton de Sá Rego, O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica.

Logo no inicio das memórias póstumas há um capítulo interessantíssimo, O delírio, em que esse narrador descreve uma viagem “à origem dos séculos”, com “uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga.”

Uma visão tão surreal que “para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago”, “a condensação viva de todos os tempos” em que os séculos “desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que se passava diante de mim…”

Para mim, este capítulo é a chave da interpretação de memórias póstumas. Em outro texto do blog me referi a relação que podemos estabelecer entre ele e o Humanitismo, a filosofia de Quincas Borba; mas aqui quero chamar a atenção para o absurdo que seria tomar esse tipo de descrição como característica do realismo, que, segundo o autor, conforme vimos, teria de contar “o número exato dos fios de um um esfregão de cozinha”.

No delírio, nem a imaginação (romântica), nem a ciência (realista) são capazes de alcançar a mensagem do autor. A influência dos autores da tradição luciânica em Machado e este interstício fantástico ou surreal, pela importância que tem no livro, foi o que me levou a sugerir para a capa da edição das memórias em que trabalhei como editor a figura inusitada do hipopótamo que “arrebata” Brás Cubas, e que, segundo o Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant é a:

“Manifestação das forças negativas que existem neste mundo… Inimigo do homem… a força bruta que Deus subjuga mas que o homem é incapaz de domesticar… o conjunto dos impulsos humanos e dos vícios que o homem não consegue eliminar por si só, manchado como está pelo pecado original. Essa massa colossal de carne exige a graça de Deus para elevar-se pela espiritualização.”

Esse é, na minha opinião, o tema das memórias, o jugo que leva à derrocada do caráter humano. O retrato de uma sociedade pútrida, da qual, num mundo sem Deus, não há escapatória.