Para uma teoria monológica da poesia
Resumo
Este artigo explora a concepção de poesia presente na obra de Mikhail Bakthin. A partir da distinção bakhtiniana entre prosa e poesia podemos rever a Poética, estabelecendo a noção de monologismo nos seus estudos. Ao lado da “Criação de uma Prosaística” é possível também uma Teoria da Poesia que se assuma monológica, que se desenvolva a partir do legado bakhtiniano e que venha estabelecer outras categorias para os estudos poéticos, contrapostas às noções de dialogismo, polifonia e carnavalização.
Palavras-Chave: Bakhtin; Poesia; Monologismo
Abstract
This article explores the concept of poetry in the work of Mikhail Bakhtin. From the Bakhtin’s distinction between prose and poetry we can review the Poetics, by establishing the concept of monologism in its studies. Together with the “Creation of a Prosaics” it is also possible a Theory of Poetry that could be monologically assumed, be developed from Bakhtin’s legacy and that could establish other categories for poetics studies, opposed to the concepts of dialogism, polyphony, and carnivalization.
Keywords: Bakhtin; Poetry; Monologism
A distinção bakhtiniana entre prosa e poesia
A obra de Bakhtin1 , além de trazer notáveis ideias para a Linguística e para a Teoria do Romance, pode nos ajudar também no desenvolvimento da Teoria da Poesia. É bem verdade que seus esforços se voltaram para a prosa e para o gênero Romance, mas suas concepções, principalmente as que dizem respeito à distinção entre prosa e poesia, contribuem significativamente para a Poética, trazendo nova luz sobre o seu objeto.
Este é tema de vigorosa obra de Cristóvão Tezza2, que demonstra quão profunda e interessante é a concepção bakhtiniana de poesia.
Para Bakhtin todo discurso é um fenômeno naturalmente orientado para o dialogismo, ou seja, o discurso vivo, real, no seu caminho para o objeto de que vai tratar, se encontra com o discurso de outrem e não deixa de participar com ele, de uma rica interação. Além de que, todo discurso é orientado para a resposta e não pode se esquivar à influência profunda do discurso da resposta antecipada. Essa é uma dupla característica social de todo discurso, mesmo antes de ser realizado e ser posto em forma de enunciado pelo falante. A isso Bakhtin chama de dialogicidade interna do discurso.
Se considerarmos um continuum que vai do mais prosaico ao mais poético, e lidarmos com os extremos, veremos que a diferença entre prosa e poesia reside no uso que o artista faz dessa dialogicidade interna3. Enquanto na prosa essa dialogicidade é justamente o seu material estruturante, na poesia ela é abolida em favor de uma única voz. Quanto mais se faz uso da dialogicidade interna, mais prosaico, ou prosaístico, será o texto.
A artisticidade em prosa, que encontra sua expressão mais completa e profunda no Romance, deriva da orientação dialógica do discurso, que, relacionando-se com a antecipação de discursos de outrem e com discursos de resposta antevistos, cria suas peculiares possibilidades literárias e também, o núcleo de seu estilo.
Em Dostoiévski, segundo Bakhtin, essa artisticidade prosaística eleva-se a um novo patamar: a chamada polifonia.
No entanto, a dialogicidade interna não encontra lugar no objeto estético da Poesia. Esse é um pressuposto do gênero poético, que não admite nenhum obstáculo ou relativização entre seu discurso e o objeto. No discurso prosaico, entre o objeto e a personalidade do falante, haverão discursos alheios (sobre o mesmo tema) e é nesse processo que se desenrola a interação que pode dar origem a estilização do discurso em prosa. O discurso prosaístico não está voltado para a realidade em si, mas para os discursos que a circundam. Já a poesia é um discurso que se volta para o objeto fenomenologicamente, sem se contaminar com outros discursos, pois visa a apreender o real, e não o debate imanente a ele. Mais ainda, podemos dizer que a Poesia se direciona além, para o supra-real. Daí a sua orientação monológica. Para focar o objeto, e apenas ele, a Poesia destrói ou anula outros discursos, abalando até mesmo a linguagem na qual se assenta, utilizando a língua esteticamente, como arte, e não como um meio funcional. Como as outras artes, e ao contrário de outros meios de representação pelo pensamento, tenta e consegue se aproximar da “eventividade” da vida. Expressa a singularidade4. É uma representação que não despreza a experiência. Sobre essas diferenças, leia-se Bakhtin, (sobre a imagem artisticamente prosaica):
Pois todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações5.
E mais a frente, (sobre a imagem poética):
Na imagem poética, em sentido restrito (na imagem-tropo), toda a ação, a dinâmica da imagem-palavra, desencadeia-se entre o discurso (em todos os seus aspectos) e o objeto (em todos os seus momentos). A palavra imerge-se na riqueza inesgotável e na multiformidade contraditória do próprio objeto com sua natureza ‘ativa’ e ainda ‘indizível’6.
A dialogicidade interna do discurso está presente em todo discurso vivo, em maior ou menor grau. Mesmo na Poesia, um dos gêneros do discurso, existe essa dialogicidade. Mas acontece que na poesia ela é reduzida ao mínimo, e à medida que se torna mais frequente, como em Maiakóvski7, acontece uma prosaização da Poesia, uma romancização do verso.
Mesmo quando o poeta flerta com outras vozes (a do jornalista, a do povo etc.) o que prevalece é a sua voz, o discurso poético estará impregnado do seu tom volitivo-emocional, da entonação do eu lírico do poema em questão.
Na Poesia, a consciência literária e a língua são uma só, se fundem sem deixar que entre elas interponham-se outras vozes ou a realidade plurilíngue do objeto em foco.
Nos gêneros poéticos, a consciência literária (no sentido da unidade de todas as intenções semânticas e expressivas do autor) realiza-se inteiramente na sua própria língua; ela é inteiramente imanente, exprimindo-se nela direta e espontaneamente sem restrições nem distâncias. A língua do poeta é sua própria linguagem, ele está nela e é dela inseparável (…) Na obra poética a linguagem realiza-se como algo indubitável, indiscutível, englobante. Tudo o que vê, compreende e imagina o poeta, ele vê, compreende e imagina com os olhos da sua linguagem8.
Melhor que definir a diferença entre prosa e poesia por meio do material ou da forma, Bakhtin as distingue por meio da postura linguística do artista da palavra.
No contexto dos estudos formalistas não ficava claro o lugar da prosa artística. A diferenciação que havia entre os formalistas era a da linguagem comum versus linguagem poética. Nesse equívoco, a prosa romanesca era encarada pela Poética nos termos de poesia, se tornando uma linguagem menor e consequentemente pouco ou mal estudada.
Com a teoria bakhtiniana do Romance, a prosa artística se torna mais valorizada e melhor delimitada em seu espaço. Já não é um gênero em que encontramos de vez em quando as belezas da Poesia, e sim um gênero com raízes outras e com sua própria “artisticidade” ou “literariedade”.
Atributos ditos da Poesia, como o ritmo, não são definidores do que é belo em linguagem, do que é literário. O ritmo é um recurso que pode ser utilizado em prosa ou em poesia, e não o critério definidor de um ou outro.
Por meio do aguçado olhar bakhtiniano, a Poética também pode rever seu objeto. O que caracteriza a poesia não é propriamente o verso, ou o ritmo, ou sua ambiguidade (todos esses são recursos). O que a caracteriza é a postura enunciativa da consciência literária. O poeta fala através de uma só voz (ao contrário do romancista), e essa voz é incontestável.
Aqui se faz necessário um breve comentário: na teoria bakhtiniana, dialogismo ou monologismo são distinções não valorativas. O monologismo da Poesia não é negativo em relação ao dialogismo do Romance. Não há valor ideológico no sentido de que o Romance é mais democrático que a Poesia O autoritarismo e indiscutibilidade da Poesia se devem ao fato de ela ser constituída pelo peso de uma só voz. É uma postura linguística. O encontro social da Poesia não se dá por meio da representação da pluralidade de vozes e entonações específicas, e sim por meio da aceitação incontestável de uma voz única. Nem por isso deixa de ser um encontro social. Na leitura de Poesia, o autor contemplador (o leitor) deve construir seu entendimento a partir da voz que fala e de uma empatia absoluta com ela. Ele só captará o objeto poético ao se tornar, ele próprio, a voz que fala. A leitura, a resposta e o diálogo só poderão existir após isso. Essa possibilidade tardia e o afastamento artificial do diálogo são características do monologismo poético. Na leitura de Poesia deve haver um duplo movimento do leitor: a empatia e o afastamento.
Na prosa, ou no Romance, o entendimento se dá em meio ao borbulhar das vozes. A voz que fala no Romance é uma voz que trabalha com outras vozes. O seu objetivo e entendimento passam necessariamente pelo embate, relacionamento e tensão entre elas.
O poeta, tal qual o romancista, é um homem histórico. Ele também se localiza no contexto plurilíngue do enunciado e do mundo, mas, ao fazer Poesia, sua voz dissolve em si mesma o dialogismo da linguagem, construindo uma voz forte e absoluta. Nas palavras de Bakhtin:
A unidade e a unicidade da linguagem são condições obrigatórias para realizar a individualidade intencional e direta do estilo poético e da sua estabilidade monológica.
Isso não significa certamente que o plurilinguismo ou mesmo o multilinguismo não possam penetrar inteiramente na obra poética. É verdade que as possibilidades são limitadas. (…) o plurilinguismo (isto é, as outras linguagens socioideológicas) pode vir integrado nos gêneros estritamente poéticos, principalmente nas falas dos personagens. Porém nesse caso ele é objetal. Manifesta-se, em essência, como uma “coisa” e não está no mesmo plano da linguagem real da obra: trata-se do gesto representado do personagem e não do discurso que representa (…) Daquilo que lhe é estranho o poeta fala em sua própria linguagem. Para aclarar o mundo de outrem ele jamais se vale da linguagem de outrem como sendo a mais adequada para este mundo. O prosador, ao contrário, como veremos, tenta dizer inclusive aquilo que lhe é próprio na linguagem de outrem (por exemplo, na linguagem não literária de um narrador, representante de um determinado grupo socioideológico), e frequentemente ele mede o seu mundo com escalas linguísticas alheias9.
Quando há dialogismo e poesia ele é mero pretexto, coisa representada, algo que apenas fortalece o ponto de vista do eu lírico e o seu tom volitivo-emocional.
Feita a distinção entre Prosa e Poesia nesses termos, podemos investigar nessa clave e sob um novo olhar o fenômeno poético.
A memória do gênero Poesia
Todos os gêneros do discurso possuem sua memória interna. Paralelamente ao seu desenvolvimento e flexibilização no tempo, o gênero carrega em si convenções que chegam ao autor não através de normas ou prescrições, mas sim através do próprio gênero. O gênero traz parâmetros, dos quais, nem mesmo o autor chega a saber a origem, e assim, eles se perpetuam.
Uma das contribuições de Bakhtin foi delimitar com precisão a origem e memória do gênero romanesco. Segundo ele, o romance teria vindo dos gêneros retóricos, do diálogo socrático e da sátira menipeia. Já a memória do gênero Poesia, podemos pensar, nos remete a epopeia. Isso não é um caso particular do Ocidente. Em todo o mundo, na ancestralidade da Poesia de todos os povos, encontramos o gênero Épico, aliado é claro, à oralidade, ao mito, às religiões e às outras artes (em seu caráter performático, teatral e ritualesco). Essa ancestralidade pode nos dizer muito a respeito da Poesia.
Enquanto o Romance está ligado à escrita e a experiência prática da vida, a Poesia se liga à oralidade e a memória. A epopeia não é literatura em sentido restrito. É uma tradição oral, de caráter performático, ritualesco e híbrido. A relação da Epopeia com o tempo é diferente da relação do romance com o tempo. O Romance se situa no tempo presente (conhecido), enquanto a Epopeia se dirige a um empo primordial (passado e glorioso). Enquanto o Romance, nos termos bakhtinianos, trata e é a própria expressão do inacabamento, a Epopeia trata e expressa a categoria do completo e inequívoco: o acabamento. Somente um passado primordial, situado na eternidade, pode conferir o que é humano a experiência do completo e incontestável. Essa é uma das raízes do monologismo poético.
Acrescente-se a isso o fato de que a relação entre Poesia e memória é bem mais íntima e profunda do que aparenta num primeiro momento. A expressão do inacabamento do Romance se baseia na experiência prática da vida, na vivência de um tempo presente e no predomínio do intelecto humano. A experiência do acabamento poético se baseia num tempo primordial, na tradição passada oralmente pelos ancestrais e na memória. Memória não é intelecto. É espaço da imaginação, do inconsciente e do espírito.
Platão diz no seu diálogo Íon que o poeta se “recorda” do mundo das ideias. O método do poeta para atingir o cosmo eidético não é o mesmo do filósofo. Nem tampouco do romancista.
A maior faculdade e habilidade para os poetas do contexto Épico era a memória. As obras eram transmitidas oralmente, não tinham registro escrito. A métrica e a forma do poema foram, a princípio, recursos que surgiram para auxiliar a memória do poeta, que guardava poemas imensos. As Musas, (as Artes), na Mitologia Grega, eram filhas de Mnémosine, Deusa da Memória. Mais que filha da Epopeia a Poesia é filha de uma Deusa, ou seja, filha do Mito.
Poesia e Mito
Muito do monologismo poético se deve a sua filiação ao Mito e à linguagem mitológica. Não há nada mais monológico que um deus ou herói. O herói mitológico e os deuses encarnam nessas aventuras a dinâmica da psique humana, sua condição, conflitos e aspirações. A voz que fala na poesia é também uma voz heróica nesse sentido. Ela tenta concentrar em si os dilemas e as buscas do ser humano em sua condição existencial. O que no Mito é contado através de histórias e aventuras, a poesia conta através de metáforas, de imagens. Há uma forte correlação entre o herói mítico e o eu lírico que fala no poema.
Tanto a linguagem mitológica quanto a poética são baseadas na metáfora10. Não podemos ler o mito do cavalo Pégaso, por exemplo, e achar que na Grécia antiga existiam cavalos alados. Pégaso é uma metáfora. Tanto a mitologia quanto a poesia se referem a dinâmica da psique humana, e como essa dinâmica é totalmente incorpórea ou abstrata, ambas recorrem à linguagem metafórica.
E a linguagem metafórica encontra seu lugar mais propício no monologismo. A prosa dialógica é um meio muito dinâmico e funcional para ela. a metáfora exige reflexão, estaticidade, participação profunda na voz do outro. Ao contrário do dialogismo, onde a troca e o entendimento são guiados sem muitos problemas pelo intelecto, o monologismo e a metáfora são guiados pela sensibilidade.
Embpra também exista em meios dialógicos e não-poéticos, o lugar ideal da metáfora é na poesia, e esse é outro atributo formador do monologismo poético.
O Cronotopo da Poesia11
Boa parte da estrutura dos gêneros discursivos e dos gêneros literários se deve ao seu cronotopo, ao tempo e espaço representados. Enquanto o dialogismo prosaico e o gênero romanesco são uma profusão de cronotopos, a Poesia parece querer se esvaziar de qualquer existência cronotópica. Quando há referências de tempo e espaço na poesia, elas, como já disse Bakhtin, são objetais, “coisa representada”. E mais:
A poesia despersonaliza os dias na sua linguagem, já a prosa, como veremos, desarticula-os frequente e propositadamente, dá-lhes representantes em carne e osso e confronta-os dialogicamente em diálogos romanescos irreversíveis12.
Enquanto o romance cria um cronotopo específico e temporal (profano), a poesia parece se realizar em outra instância. O cronotopo poético se assemelha a um não-cronotopo muito frequente nos mitos: o cronotopo sagrado.
A prosa tem caráter sintagmático13, nela o discurso se desenrola em sucessão de sintagmas, sucessão de informações. A apreensão do discurso prosaico se dá por assimilação das sucessões. As coisas vêm umas depois das outras, separadas, semelhantes à experiência temporal humana, semelhantes ao tempo do Romance.
Já a Poesia tem caráter paradigmático14. Os versos se inscrevem uns por sobre os outros, dentro do mesmo instante. As imagens e metáforas não se sucedem, se aglutinam, se fundem, fortalecendo umas as outras. Etimologicamente “verso” quer dizer “volta”. O tempo da Poesia não se dá horizontalmente como no Romance. Ele é vertical. Os versos vão cavando no mesmo buraco deixado pelo verso anterior, anulando o tempo, conferindo estaticidade ao poema.
Podemos enxergar no poema um movimento circular. O último verso tem no fundo o mesmo conteúdo do primeiro. Essa é a razão porque a forma do poema é tantas vezes regular. Os versos são iguais em conteúdo e por isso tendem a se imitar formalmente. Soam ritmicamente, linguisticamente, e sonoramente iguais entre si. Por isso os versos se agrupam muitas vezes em estrofes de igual dimensão, assim, reforça-se a unidade, estando a estrofe seguinte sempre na sombra da primeira. As estrofes se assemelham em forma e dimensão por serem na verdade a mesma estrofe.
Todo esse instrumental instaura na Poesia um tempo e um espaço diferenciados, extremamente unos e monológicos, que correspondem a um outro instrumental conhecido: os parâmetros da experiência espaço-temporal do sagrado.
Em autores como Joseph Campbell e Mircea Eliade percebemos uma unidade de descrição da experiência sagrada no espaço e no tempo.
O espaço sagrado é um centro, um ponto fixo em torno do qual todo o mundo passa a se configurar, a partir do qual tudo gira ao redor. Nada pode ter origem sem uma prévia orientação, daí o sentido existencial desse ponto fixo para o homem religioso, daí porque a maioria das experiências místicas fala num “centro do mundo”. O espaço sagrado organiza o caos do espaço profano e liga o homem religioso ao espaço primevo, o centro de onde irradiou toda a criação. Ao inacabamento do espaço profano contrapõe-se o acabamento do espaço sagrado, o que é análogo ao exercício poético: criação monológica organizada e completa direcionada à transcendência.
O espaço sagrado pode ser um círculo feito no chão por um cajado, como também uma grande catedral medieval, o que importa é que esse espaço se separou do espaço secular e sua finalidade é de outra ordem. O espaço sagrado é um lugar de contemplação e mistério, um espaço feito de modo a que quem participe dele vivencie uma metáfora.
Assim é o espaço do poema, edifício de palavras em torno de um ponto fixo, construto de imagens num tempo estático que conduz a um estado contemplativo onde a metáfora é um incenso de mistério. Nesse lugar a luz do intelecto se apaga e cede lugar ao inefável.
A maioria das experiências místicas relatadas acontece num lugar especial. O Buda atingiu a iluminação assentado sob a árvore Bo, “o ponto imóvel”, o axis mundi. A cruz de Cristo no Gólgota também está sobre o ponto imóvel, num lugar da temporalidade que a redime por inteiro. Assim é a Poesia. O fluxo poético tende a construir um espaço especial, imóvel, sagrado. Os versos circulam num ambiente fixo, estático, completo e forte. Ao invés dos meios religiosos, o poeta utiliza meios estéticos para construir uma experiência análoga à mística, correlata à experiência espacial sagrada. O silêncio que a Poesia impõe é o mesmo do espaço sagrado. Mais uma faceta de seu monologismo.
O tempo sagrado também tem características próprias perfeitamente assemelhadas ao tempo poético. O tempo sagrado difere do profano na medida em que é um tempo mítico primordial tornado presente periodicamente. Toda festa religiosa, todo tempo litúrgico é na verdade uma reatualização de um evento sagrado que teve lugar num passado mítico, nos primórdios. A participação religiosa nesse tempo acarreta a saída da duração temporal ordinária e profana e a integração num tempo mítico forte e completo, aberto pela festa ou dia santo. Este tempo sagrado é um tempo recuperável, que pode repetir-se diversas vezes. Ele é sempre igual e não se esgota. É o tempo dos deuses e heróis, que é forte e santo devido a presença desses. em outras palavras é a irrupção da eternidade no plano temporal.
Tal qual o homem religioso o poeta esforça-se por voltar a unir-se a esse tempo sagrado. Ele conhece esse tempo extraordinariamente intenso, que a arte adora representar. Esse é o tempo da experiência mística, esse é o tempo do amor – que tem um ritmo diferente, cuja força provoca uma ruptura no tempo profano e faz vislumbrar o mistério e a inteireza da atemporalidade. Tal qual um templo constitui uma ruptura no espaço profano de uma cidade, e o serviço sacerdotal que se realiza em seu interior constitui um serviço diferenciado do comum, assim é o lirismo poético, uma rotura espaço-temporal-psicológica, uma elevação da consciência ao plano mítico-místico, que irradia o sagrado e a eternidade. O tempo do poema, catedral solitária e isolada, não é o tempo histórico, não é o tempo que se passa nas ruas, e sim um tempo santo.
O homem religioso, quando faz uma habitação ou uma cidade, quando cria alguma coisa, reatualiza a cosmogonia. O poeta, no seu ofício psicológico, não apenas cria dentro de outra criação, mas sim perpetua a energia criadora original, vinda dos tempos primevos. A nostalgia religiosa, ou a nostalgia das origens do homem religioso, se correlaciona à nostalgia lírica dos poetas.
O tempo da poesia pode ser comparado ao tempo da criação. O poeta realiza uma espécie de retorno aos primórdios, lugar onde a linguagem também estava sendo criada. E assim sua linguagem, a linguagem poética, se diferencia da linguagem comum, pois se encontra num lugar onde pode ser recriada, reatualizada. O fenômeno linguístico reacontece com toda a força e densidade da linguagem primordial. Um grande exemplo é a poesia de Manoel de Barros. O poeta fala numa linguagem nova e forte, como a de Adão. Na linguagem poética a língua se rearranja esteticamente, transformando a recepção e percepção do leitor, remetendo-o ao tempo sagrado. Nas palavras de Bakhtin:
Em matéria de poesia, é possível a ideia de uma “linguagem poética” especial, de uma “linguagem dos deuses”, de uma “linguagem sacerdotal da poesia” etc. É característico que o poeta, na sua recusa de uma dada linguagem literária, comece a sonhar com a criação artificial de uma nova linguagem poética, antes do que recorrer aos dialetos sociais existentes. (…) a linguagem da poesia, criada artificialmente, será diretamente intencional, peremptória, única e singular.
(…) A ideia de uma linguagem da poesia, única e especial é um filosofema utópico característico do discurso poético: na base desse filosofema repousam as condições e as exigências reais do estilo poético, que satisfaz a uma linguagem única, diretamente intencional, a partir de cujo ponto de vista as outras linguagens (a linguagem falada, a linguagem de negócios, a linguagem prosaica etc.) são percebidas como objetivadas e em nada equivalentes a ele15.
Na base do monologismo poético existe também o tempo forte, novo e especial da experiência sagrada, que, na poesia é uma posição estética da consciência literária.
No tempo e espaço sagrados a presença dos deuses e heróis não é absolutamente concreta. E nem poderia ser, pois, se o homem religioso ou o poeta se apropriasse do deus plenamente, ele faria parte da esfera temporal, do mundo profano, e já não poderia transcender. Por isso o poema não define, sugere. E isso ele o faz por meio da metáfora.
Considerações finais
O monologismo poético é algo que precisa ser profundamente analisado pela Teoria da Poesia. Sem dúvida essa análise passa pela “memória d gênero”, por sua filiação ao gênero épico e ao mito, por uma pesquisa detalhada sobre as características cronotópicas e pela análise do corpus mais monológico da poesia: a poesia lírico-mística.
Como já disse Cristóvão Tezza16, a “crise da poesia parece ser a da autoridade poética”. O monologismo da poesia exige uma força tal, que, em tempos de dissolução total do mito e predomínio pleno dos gêneros romanescos, a poesia parece se intimidar.
Joseph Campbell dizia que o mito é o sonho coletivo e o sonho o mito particular. Por mais que o mito coletivo tenha se dissolvido, restam os mitos particulares, que são a base e a força da poesia.
A partir do legado bakhtiniano a Teoria da Poesia pode desvendar a postura poética, resgatando parâmetros desse gênero que cada vez mais se vê invadido pela força da prosa, cada vez mais romancizado. Não que a literariedade do Romance seja menor, mas o caso é que ela é diferente, e assim, a força original do gênero poético fica de lado, negociada num mundo prosaico.
Esses estudos podem auxiliar a crise da poesia, investigando os fatores e atributos de seu monologismo, recolocando o poeta em seu lugar de autoridade, resgatando-o da mediocridade de um mundo fragmentado e relativizado em que ele vem ocupando o posto de “romancista menor”, pouco lido e menos ainda entendido.
Contrapostas as categorias desenvolvidas por Bakhtin para o gênero romanesco, podemos identificar categorias outras, derivadas do monologismo poético.
Oposta aos parâmetros da carnavalização, temos uma espécie de mitologização na poesia. Enquanto a prosa e o gênero romanesco parecem próprios da carnavalização: representação temporal e delimitada de um “mundo às avessas” que questiona os sistemas sociais humanos – a Poesia parece ser o terreno de uma ordenação cósmica particular, a mitologização. Opondo-se a criação de uma zona de contato familiar carnavalesca, temos na poesia uma zona de contato espiritual divina. Contraposta a experiência temporal do carnaval, temos a irrupção de uma experiência estético-espiritual de eternidade na Poesia.
Fato é que a comunicação poética não se dá pelas mesmas vias que a comunicação prosaística. Enquanto nos gêneros romanescos essa comunicação se dá pelas vias lógicas e funcionais da língua, na Poesia a comunicação é intuitiva, se dá pela via da sensibilidade e parece conter em si uma identificação de arquétipos do inconsciente, que se materializam esteticamente nas imagens e metáforas.
A comunicação poética envolve mais que o intelecto. O juízo artístico “a priori” de que falava Kant, parece se envolver nessa troca intuitiva que é o poema. A comunicação poética, tal qual a prosaica, é também um fenômeno social, no entanto, com características distintas.
O discurso poético é naturalmente social, porém as formas poéticas refletem processos sociais mais duráveis, ‘tendências seculares’ por assim dizer, da vida social17.
Se ainda não podemos definir a comunicação poética, podemos ao menos definir a postura linguística da consciência literária que engendra o fenômeno poético:
O poeta é definido pelas ideias de uma linguagem única e de uma única expressão, monologicamente fechada. (…) não deve existir nenhuma distância entre ele e suas palavras. Ele deve partir da linguagem como um todo intencional único (…) para isso o poeta desembaraça as palavras das intenções de outrem (…) Tudo aquilo que penetra na obra deve se afogar no Letes, esquecer da sua vida anterior nos contextos de outrem: a língua só pode lembrar de sua vida nos contextos poéticos18.
Referências
1 – São referências desse trabalho a obra de Bakhtin, englobando as obras do chamado “Círculo de Bakhtin”, seus escritos da juventude (Para uma Filosofia do Ato), e principalmente o capítulo chamado: O discurso na poesia e o discurso no romance, do livro “Questões de Literatura e Estética (A Teoria do Romance).
2 – Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo. Tezza, Cristóvão – Rocco, 2003.
3 – Cf. Id. pág. 266.
4 – Para uma Filosofia do Ato.
5 – Bakhtin, Mikhail – “O discurso na poesia e o discurso no romance” (Questões de Literatura e Estética) pág. 86.
6 – Ibid.
7 – “Sobre Maiakóvski” no livro “Bakhtin (dialogismo e polifonia) org. Brait, Beth – Editora Contexto, pág. 194.
8 – Bakhtin, Mikhail – “O discurso na poesia e o discurso no romance” (Questões de Literatura e Estética). Pág. 93/94.
9 – Bakhtin, Mikhail – “O discurso na poesia e o discurso no romance” (Questões de Literatura e Estética). Pág. 94.
10 – O conceito de metáfora nesse trabalho engloba os conceitos de conotação, comparação, alegoria, e símbolo.
11 – Cf. Eliade, Mircea – O Sagrado e o Profano.
12 – Bakhtin, Mikhail – “O discurso na poesia e o discurso no romance (Questões de Literatura e Estética). Pág. 98
13 – Cf. Bosi, Alfredo – O Ser e o Tempo da Poesia (Cap. 1 “Imagem, Discurso”)
14 – Id.
15 – Bakhtin, Mikhail – “O discurso na poesia e o discurso no romance” (Questões de Literatura e Estética). Pág. 95/96.
16 – Tezza, Cristóvão – Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo.
17 – Bakhtin, Mikhail – “O discurso na prosa e o discurso no romance” (Questões de Literatura e Estética). Pág. 106.
18 – Id. pág. 103.