Neuromancer

Joseph Campbell certa vez contou que em uma de suas entrevistas para o rádio, onde divulgava o seu recém lançado Historical Atlas of World Mythology: The Way of Animal Powers, não conseguiu demonstrar a natureza da metáfora para o seu interlocutor, que insistiu até o fim de que tratava-se de uma mentira. Isso inviabilizou todo o diálogo.

Sempre que abordada de maneira racional, através da lógica, a metáfora será uma mentira. Uma coisa não pode ser outra coisa. Mas isso não quer dizer que a metáfora seja infantil ou algo para simplesmente se desacreditar. A metáfora é um recurso utilizado para desmantelar as limitações da linguagem e permitir a comunicação em outro nível, não racional.

É óbvio que a palavra em sua dimensão denotativa possibilitou todas as conquistas civilizatórias humanas, mas o impulso para a metáfora é o que fundamentou os mitos, as artes e até mesmo as religiões.

Assumindo-se como parabole (comparação), a palavra traz à consciência a verdade de que o universo existe para além dela, cheio de possibilidades inefáveis. Como já disse Osman Lins, “duas vezes foi criado o mundo. Quando se fez mundo e quando se fez palavra”, ou, citando Baudrillard: “o signo é sempre o eclipse da coisa”.

O homem circunscrito totalmente na palavra lógica não existe, não porque é imperfeito, mas sim porque existe além, ou aquém (não importa), dela.

A vida sem metáfora ou ficção é uma vida que nega o humano, e que, nessa atrofia, se flagela. Vejo a literatura como um dos resultados desse impulso metafórico, e, sendo assim, algo que se irmana ao mito e às religiões. Nessa perspectiva, não posso jamais considerar a ficção científica ou a fantasia como gêneros menores de literatura, pois eles trazem em seu âmago esse impulso fundamental.

Ao ser premiada pela National Book Foundation, Ursula K. Le Guin, uma grande escritora que fez suas incursões por estes gêneros, lamentou-se de que, “por 50 anos”, a maioria dos prêmios literários foram concedidos a escritores chamados “realistas” em detrimento dos “autores da imaginação”, elogiados por ela como “os realistas de uma realidade maior”.

Nenhum romance pode ser considerado melhor que outro por refletir de maneira mais objetiva ou menos imaginada a realidade que o molda. Desde sua primeira palavra qualquer escrito literário será ficcional, e não é o seu grau de realismo o atributo que definirá sua qualidade. Essa atitude em relação à literatura é correlata à do entrevistador de Campbell que só entendia a metáfora como “mentira”. Toda literatura é, ao mesmo tempo, mentira e também verdade. O que importa é que esse mundo ficcional seja bem construído e que tenha sua lógica interna.

O gato Mandela e o @raphael_cavalcante_oficial que leu Neuromancer e participou do clube de leitura Distopília

É nessa clave que trago aqui minhas considerações sobre o livro Neuromancer, de William Gibson. Publicado em 1984, o livro é considerado o precursor do cyberpunk. A obra arrematou a chamada “tríplice coroa da ficção científica”: os prêmios Hugo, Nebula e Philip K. Dick e desfruta hoje do status de clássico.

É preciso dizer, logo de início, que a leitura da obra direcionada em termos de julgamento sobre acertos ou erros quanto ao futuro imaginado é empobrecedora. Asimov, um dos grandes escritores de ficção científica afirmou que “a imaginação dos autores está presa ao tempo e à sociedade em que eles vivem”, ou seja, o “futuro” descrito neste tipo de literatura é, na verdade, uma metáfora do presente. De acordo com Lelia Green, é “o lado sombrio da sociedade contemporânea que é projetado nos ciberfuturos da ficção científica”, numa espécie de estratégia para se discutir o presente e suas mazelas que, exageradas, dão o tom distópico muitas vezes presente neste tipo de literatura.

Essa é a gênese de Neuromancer, um bom livro de ficção científica que desvela problemas existenciais de todos os tempos numa roupagem reelaborada, uma estética impactante que repercutiu no cinema, na música, nos videogames, quadrinhos e RPGs. Ao ser discutido por teóricos e críticos e incluído na lista dos cem melhores romances em língua inglesa da revista Time, esse romance, como os de Le Guin, tem desmistificado a ideia de que a ficção científica é um gênero menor, abrindo caminho, cada vez mais, para que essa literatura tenha um maior status literário. Para Adriana Amaral, estudiosa da cibercultura e da obra de Gibson:

A força do imaginário de Neuromancer reside na visão de mundo que a obra nos delineia à medida que avançamos em seus mistérios técnicos e corporativos, através de sua ‘prosa exemplar’: tecnológica e mecânica para alguns; e pós-moderna, vulgar e irônica para outros em sua confluência de citações, intertextos, colagens e paródias da cultura pop e da própria história da ficção científica.

Longe de significar apenas encantamento com a tecnologia, o livro de Gibson é ambivalente, retratando a tensão da relação humano-máquina; tampouco trata-se de puro escapismo fantasioso. Evitando assim as duas maiores armadilhas para a literatura de ficção científica ou de fantasia: a alienação e o escapismo, o romance é digno de ser lido mesmo pelos que não são fãs do gênero, e vale como um exemplo de que a literatura de valor não precisa se apegar obrigatoriamente à realidade contemporânea, podendo ser profunda e filosófica mesmo em universos totalmente imaginados. Para resumir numa só frase de Le Guin:

As pessoas que negam a existência de dragões em geral são consumidas por eles. Em seu interior.