Um plot anticlímax

Quando o defunto autor de Machado em Memórias póstumas de Brás Cubas decide contar a sua história começando pela própria morte, há nesse artifício bem mais do que apenas um chiste.

Chamo atenção para o delírio do personagem no capítulo vii e sua força simbólica. Ao iniciarmos a leitura desse, nos deparamos com um comentário inusitado do narrador: “…pode saltar o capítulo…” Ora, na chave irônica de interpretação, adotada devido a natureza dúbia desse locutor, (artimanha explorada ainda mais vigorosamente em Dom Casmurro), podemos desconfiar e ficar alertas ao máximo: talvez ele esteja dizendo que este é o capítulo mais importante…

Se desconstruírmos o plot, visualizando desta maneira a narrativa por inteiro, de forma linear, perceberemos que o delírio de Brás Cubas é a última passagem de sua vida, sendo o relato do enterro algo que já pertence ao domínio do outro mundo.

O último instante de alguém, pelo menos no que concerne às narrativas, costuma ser apoteótico e significativo. Em relação ao personagem principal então, é algo que deveria fazer parte do clímax, como dizem os manuais de escrita criativa…

O autor do romance está ciente disso, mas sua intenção durante toda a obra, a de prender o leitor não com o enredo mas com suas coesas e deliciosas digressões, faz com que esse clímax repouse nas entrelinhas.

O que me levou a essa leitura foi a coincidência textual (e em literatura não há coincidências) de um trecho do relato do delírio e uma das passagens da doutrina do humanitismo – suposta filosofia revelada pelo personagem Quincas Borba, que passa a ser a crença, ou para expressar melhor, o envoltório intelectual das não-crenças de Brás Cubas, seduzido como é por estas ideias:

(…) um novo sistema de filosofia (humanitismo), que não só explica e descreve a origem e a consumação das coisas (…)

(…) Vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou… (…) -Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos (…) Isto dizendo (Pandora), arrebatou-me ao alto de uma montanha (…) contemplei (…) uma coisa única (…) uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles (…) -Bem, os séculos vão se passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade (…) ia enfim ver o último, – o último!

Compreendemos então que Brás Cubas nasce, cresce, conhece a filosofia de Quincas Borba, delira, morre e conta sua história do além. Sendo assim: 1) A maneira filosófica de contar as primeiras vicissitudes de sua vida, antes de conviver com o amigo adulto, já é influência de Quincas Borba. 2) O contato com a mencionada filosofia foi o sentido (ou o não sentido) que encontrou em sua jornada. 3) Seu delírio, apoteose do sentido/não sentido de sua vida, antecipado no capítulo vii para que a “pena do narrador não escorregasse para o enfático”, é uma manifestação metafórica do Humanitismo, que de filosofia passa a ser, na verdade, a constituição sistemática das ideias trabalhadas no romance e…


o elemento estrutural e simbólico de suas críticas.