Ventos Maus

Sadaena! eu disse. As luzes se acenderam, então fechei a porta atrás de mim. O lume ofuscante e azulado combaliu meus olhos e descortinou o espaço abandonado. Divisei o salão abaixo e a escadaria enorme que me levaria até lá. A descida me lembrou de como tudo começara, quando no alto de uma escada parecida com aquela vi o abismo de que não mais retornaria.

Móveis e utensílios arcaicos contrastavam com equipamentos um tanto rudes, mas de uma tecnologia tão sofisticada quanto a dos sathezinodot. Ao largar o corrimão, apoiei-me com dificuldade onde podia e olhei as tabuletas, papiros, pergaminhos, códices e livros do abrigo subterrâneo. Até nas paredes havia transcrições de estelas, ossos e bambus antigos. 

Passando por uma infinidade desses objetos poupei as retinas e fruí o prazer tátil do museu secreto. Tudo ainda silente e em suspenso. Eu arrastava as mãos no que estivesse próximo, ainda que não precisasse tocar, segurar ou folhear nada daquilo para ler. Toda a biblioteca está ao meu alcance, à distância de apenas um pensamento. Um mecanismo em forma de dodecaedro conectado ao meu cérebro sobressai em minha nuca e me oferece o tesouro da Ordem dos Satheen.

Proibidos pela Fash-Gotom, a Igreja Estatal, durante as Sakrokeomae, as Guerras Revolucionárias, os livros foram retirados de circulação em todas as suas formas. Eu, Enom, sou o único que tem acesso às antigas edições, preservadas ao custo de muitas vidas. Toda informação agora é controlada pelo Keshaom, o Estado Único, e padronizada pelos Sathedanik, os escribas de Neshmas. Todos os livros foram mutilados e reeditados como atestados de uma nova era. Um cotejo das edições desse bunker com as do mundo exterior revelaria a falta de qualquer semelhança, expondo de forma escandalosa o maior roubo da História. Eu sou aquele que devolverá esses escritos e sua turbulência ao mundo.

Sentado numa das mesas dos copistas, que ficavam após os maquinários de tipografia, depois de um longo corredor, dei um suspiro longo, amarrei meus cabelos brancos e fechei novamente os olhos. A quietude tumular do local me absorveu. Para mim, que sofri com inúmeros trabalhos, o silêncio sugeriu o fim da jornada, e nesse subterrâneo inalcançável, de solidão absoluta, me prometeu a paz.

Estou aqui para cumprir a última fase da minha missão. Nunca mais verei o amanhecer, no koshian-fiaom. Nem notarei o aroma da noite no talash-anagian. Não saberei dos rumores do entardecer na keshin-faiom, nem sentirei o sono da tegar-dalin em minha pele.

A história da Satheennain e dos seus feitos durante a Lasma-Faiom, a conquista da Pequena Terra do Leste, precisa ser escrita e divulgada. Um derradeiro ato de rebeldia nesse que foi o último continente livre.

Ativei o teclado holográfico e a tela azul e imponente se abriu aos meus olhos engolindo o pequeno cisco que era a minha consciência. À borda do sono iminente, lembrei-me de quando conheci Evartama, o Escriba. Eu era jovem e perambulava pelas ruínas com fome, nas cercanias de Denami.

Tínhamos subido as escadas de um casarão que encontramos para descansar. Já dentro de um dos quartos, senti pela primeira vez a náusea que depois se tornou tão familiar. Voltei da exploração ao ouvir barulhos vindos de baixo. Meus amigos estavam sendo atacados pelos Saishtin. Aquele foi o momento em que minha vida mudou. “Mas quando foi que tudo começara?”, pensei.

Até que recordei, na voz do Escriba: “Há muitas coisas nesse mundo, Enom, que vêm de fora do tempo.”

Dormi, e quando acordei do sono inquieto a débil promessa de paz estava esfacelada. Trazia a guerra dentro de mim e a atmosfera claustrofóbica do bunker não ajudava a dissipar o pesadelo. Eu estava perturbado.

Em sonho, vi-me menino caminhando entre uma multidão na grande artéria norte de Ilashe, indo em direção ao templo da deusa. Lá, os meus irmãos da Satheennain estavam atados e cercados pelos pelotões da Krigevadk. Em exibição pública, dispostos na frente do templo, com círculos negros prendendo os pés, as mãos e o pescoço, olhavam para mim enquanto a multidão os encarava. Uma canção conhecida vinha de algum lugar, mas estava diferente, desafinada. Enormes e vermelhas no alto, as luas se irmanavam ao frio esmagador daquela noite a minha volta. “Eles eram os últimos”, pensei.

Os círculos foram ativados e fizeram um ruído agudo. Suspensos no ar, pelos colares negros do pescoço, eles não se contorciam, pois estavam imobilizados pelos dispositivos das mãos e dos pés. O único sinal de desespero era a maneira como me olhavam. Seus olhos reluziam contra as esferas ameaçadoras do céu e a escuridão da avenida larga.

– Morreram por mim?

Depois de um longo tempo aqui, explorando toda a extensão da estrutura, me inteirando de como minhas necessidades seriam aplacadas, percebi que dispunha de mantimentos e água em abundância. Dias depois do pesadelo fui tomado pelo impulso de escrever, talvez para afinar a canção, da qual eu ainda não lembrava, mas que, distorcida daquela maneira no sonho, me causava um repúdio insuportável. Por pior que tivesse sido, percebi que aquele terror inconsciente resolveu a questão que me paralisava. O problema não era quando, mas onde. O templo da deusa, que eu não conhecia senão daquele devaneio, era uma diretriz. Agora sabia por onde iniciar a tarefa que me trouxe a essa reclusão.

Em segundos estavam reunidos em minha mente os vários livros relacionados ao que me propus. As revelações de Evartama, escritos sobre as origens de Ilashe, a biografia de Irtdon, e outros. Havia também os kriganag de Medonin-Danok e Keshtheian-Nelin, as fontes principais desse relato. Estava, enfim, decidido. É preciso começar de algum lugar e por que não pela grande cidade do norte e seus segredos? Estar aqui, nesse abrigo, não é uma colossal afronta ao Destino?